domingo, 31 de janeiro de 2010

Adeus à relva

E eu verei sempre – ainda que de longe, a casa, no emaranhado de lembranças, que se sobrepõem ao medo de te reencontrar, pois sei que – mesmo que te escondas, estarás lá, me esperando para de novo me converter.
Eu passarei ao largo – encoberto pela sombra dos postes. Serei a noite, que escapou da noite, que dormia em teu quarto.
E, sem querer me aproximar, serei chamado pelo vento, que passeia no jardim de tua casa. Não tenho certeza se aceitarei o convite, que exala de tua alma, e que desfalece no corpo na cama.
Não. Prefiro o esvoaçar de teus cabelos. Neles me enrosco e me encontro, descubro-me, nesse sussurrar de veículos, que descem a alameda, que circunda teu esconderijo.
Se foges, fico. Se ficas, saio.
Não quero que me encontres, para te saudar, quando chegares à saída da escola – ou à lojinha de miudezas, em que entras...
Ah, como anseio por esse momento, que repudio e rejeito! Ah, como desejo te ver outra vez, como daquela vez – a primeira, quando o mundo ainda era indócil, e eu jogava pelada no campinho da rua!
Fui um bom jogador! E como te agradava! Tu, que tinhas pouca idade, ainda sabias sorrir, e eu flutuava em teu sorriso, descansava em teus lábios, e fugíamos para os igapós, que nos avisavam do perigo, pois éramos ingênuos, que nem as galinhas-dágua, que fugiam de nosso silêncio.
Eu fui, não ficaste...
Mas não foste, nem comigo nem com a chuva, que deixou de cair naquela tarde, porque já era tarde para estar.
E nós? Ora, nós! Não éramos, não fôramos o laço, a arapuca, o visgo, a espera... Tudo servia para atrair os incautos: o arroz com casca, o milho quebrado, a crueira, até tripa de galinha para pegar siri, no trapiche.
Eu fui teu amante...
E hoje, quem sou? Nem lembrança. Nem a cor do chinelo que não calças mais hoje. Mas lembro de quando tiravas a blusa e depois... Naquele quarto mora a dor de todos nós...
Hoje, me disseste adeus, e eu – atônito, me segurei para não cair, permaneci em pé, e com uma só perna desci a ladeira, e quase havia choro. Só não chorei, porque ainda era cedo para subir de novo e te encher de porrada.
Rua de tantas ladeiras!
Hoje, disseste não, me deitaste fora, me deixaste confuso. Até agora não me recuperei, mas sei o que faço. Vou para a praia. Lá, sou amigo da areia. Ela me aceita e me deixa deitar, sem ter que mentir... Minto muito.
Menti para ti, para te livrar da verdade, e agora me arrependo. Isso bem que poderia ser evitado.
Trago o tango, todos os vícios do mundo, do homem. Homens e mulheres descansam sobre mim, dançam e cavalgam meu cavalo, que esconde a noite, a chuva, o vento, que escorregam para a barba, que deixei crescer só de propósito, só para me diferenciar dos poetas, de quem tenho raiva, porque só dizem besteiras, só escrevem o que não deveriam, e têm barbas compridas.
Sei que estou ficando velho, que deixo, toda manhã, no lençol, parte do pelo que cobre meu corpo.
Ah, o mundo, com suas mazelas e beleza! Não. Não sou o mundo, nem poderia sê-lo, ainda que me levantasse todo dia às cinco da manhã.
Não, mas já fui uma vez professor, escritor, quase um artista. Hoje, choro, porque penso, que, se tivesse nascido antes, talvez chegasse vivo a poeta.
Estou morto e meus pais não sabem... Ninguém sabe. Nem os jabutis, que cochilam no quintal, nem o pé de acerola que dá o ano todo...
Mas uma porção de gente desconfia, porque meu corpo cheira mal, é sinal de que ainda estou vivo, que desejo viver muito mais do que todo mundo junto.
Há uma canção correndo no ar, um agudo que me encanta. Gosto disso, do altissonante das palavras – ainda que não as entenda bem. São elas que criam a atmosfera do plano oculto, que carrego em meus dedos, que fogem feito loucas.
Sim, já é hora de parar...
Veio lá de dentro o aviso, a senha, o desejo de descansar. A canção, agora, é outra. Sei, por isso, que é o momento de dizer adeus. Adeus, meu irmão, adeus, minha irmã de palavra. De palavra em palavra, enchi meu cofo, transbordei meu alguidar.
Agora, é chegado o fim. O fim que insiste em recomeçar.

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