terça-feira, 30 de março de 2010

Viagem

no início, leremos nossos livros

lá pelas tantas, tentaremos uma saída
quem sabe um champanhe
talvez uma flor encaixotada

e se ainda não for dessa vez
amargaremos nossa dor

iludiremos – se for o caso, nossos sonhos
e sonharemos que fomos infelizes

já pelo fim, iniciaremos o regresso
mas não deixaremos de passar a chave na porta
para que deixá-la encostada
se nossa viagem não tem retorno?

finalmente, enfrentaremos a tormenta da chegada

aonde desembarcaremos
só a manhã poderá nos dizer

impassíveis, deitaremos para sempre

Vassalo

eles me olham, lá de cima
são abutres, espreitando minhas vestes

o que faço ou deixo sobre a mesa
interessa-lhes

é para eles que escrevo
deles, são os livros que amontôo na estante

já não passo sem eles

lá de cima, os abutres...
parecem gostar do que vêem,
embora não sintam a dor que me fere,
enquanto se banham em suas piscinas azuis
e se refrescam com os litros de bebidas,
que sorvem de propósito

e não há vestígio que lhes escape à argúcia

de seus olhos, brotam o fogo que me fará cadáver
a chama que me rebrotará sem marcas passadas

nova ave sanguinária
sem escrúpulos e instintos atentos

Semente

sou meia dúzia de palavras
e ponto final

no muro de minha casa, inauguro
a insanidade desse tempo, que não consigo reter

é nele que escrevo o que sou
e deixo a marca do que restará de mim

não sairei daqui para que me encontres
nem desligarei o telefone para que me fales de ti

se for possível te acessar
farei várias tentativas na internet para ver teu retrato
e desvendar o mundo em que subsistes

de todas as palavras
a de que mais gosto é a que ainda estou por escrever

Infinito

não havia trem, mas eu o via sempre
sobre restos de trilhos

de maria, a fumaça
uns dentes pra fora, comendo lenha, bebendo água

o lugar do maquinista sem ele
(o trem andava sozinho)

o corpo parecia grande, mas cabia em meu peito

as janelinhas pintadas
aos fundos, a estação encardida, nem sinal de gente!

torcia para que me visse
e viesse me encontrar, mas o céu parece que o prendia

que fim levou, não sei
é possível que ainda esteja por aí
ou – quem sabe, ferro velho, esquecido, à beira da estrada

sei, que de lá não sairá, pois está aqui,
na parede da sala, em viagem sem fim

Escape

manhã sobre telhado, sol sob lençóis
no peito, sonata solta ao léu

solidão que o vento
largou longe das horas

cinzas tingiram teus olhos
rugas enrijaram tua pele

bobagens fora de época
flores sem estação

afinal, de quem são as honras?
para que sobraram os heróis?

és a nota da canção
que guardei em meus dedos

sem isso, pensei que sofrias
com esse disfarce
de que te valeriam as sombras deixadas pra trás?

escapa-te o sorriso
que não aprendeste a esconder

Canção de ferocidade

Perpetuo a relva sem orvalho desse céu que camuflo para o ano por vir. E, enquanto aguardo a estação, estanco teu passo, na estação, e – em teus braços, escrevo...
Nela, ressurges renovada, mas já não existe caminho nem viagem por seguir. Retomo o ponto, retoco a nota, troco de passagem. Finjo – sempre fiz isso, mas ainda hei de te adorar sem virtude.
E tu, que saíste de meu peito, deitarás de novo, no charco de lembranças, o laço que enfeitava o fim de nossos dias.
Analiso o que bebo e só depois decido a hora de acordar. Mas, quando durmo, és tu que te deitas e deixas abertas as portas. Se não entro, reclamas, e – quando saio, são teus olhos que despertam...
Desfruto esse instante, que sei ter sido nosso. Por isso, reclamo o vinho deixado em tua casa, quando todos ainda lutavam por se aquecer.
Por mim, podes bebê-lo. Eu estarei atento a teus goles. Só não te esqueças e te iludas, que ele é de origem fiel. De suas uvas, as aves arrebataram o pior. Não te enganes por isso nem aflijas os que por ele desistiram de chegar...
Os que de tão perto vieram ainda estão por aí, e o dia de nosso vôo será a fartura de favos, e a chuva, e esse...
Cravo, que a madeira recusou. Cova, que o fogo enobrece e o vento refaz.

Canção de fecundidade

Venço a noite, que amanhecia, e de suas entranhas recolho o hálito dos cães, que purgavam nossas chagas. Eu era a foice, ceifando os sonhos dos que não se deixavam dormir...
Dessa guerra em diante, perambulo bosques e avenidas, amaldiçoando os que abençoam e ferindo os que cuidam de mim. Sou a perniciosidade das mães, que enfrentam a mansidão de lagos e manhãs...
Tolos faziam seus mortos subirem a telhados, sobejos se aglomeravam por caminhos e tanques, andrajos imploravam para ser vara, incréus me pediam as mãos para ver...
Eu ia à esquina e colocava algo no estômago e lembrava as moscas, que voejavam nossos quartos largados na estrada. Reconheço aqui uma tíbia. Ali, a pelve e os pelos de sovacos...
E – antes que refizesses a cama, pedia que te prevenisses. Mas tu, que atiravas às flores tuas pétalas, desfazias-te das trapaças deixadas em casa, quando vinhas me encontrar. Ele chorava, mas que podias fazer?
Em seguida, encaixávamos nossos braços e saíamos como se houvéssemos. E – de longe, ouvíamos as lamúrias, que ressurgiam a nos assustar. Eu – então, perguntava: que fim levou? Silêncio, nada respondias...
Mas, quando se aproximava a hora de voltar, já não eras mais tu, que eu ouvia. Era a noite vencida, trespassada, que me alcançava, e sorrindo desse infortúnio, fecundava a manhã...
A manhã, que nem eu sentia.

Canção de antiguidade

Capino na pedra, seguindo a direção que ela indica.
Caibo na enxada e com ela firmo o pacto: a partir de hoje, adiante, sempre junto, vai o esforço para não me atrasar.
Sou o caminho que vamos fazendo.
Para onde iremos, só saberemos depois, quando a grama da praça desaparecer.
Por isso, me apresso. Tenho pensos sobre mim, trago trapos nos olhos e de longe percebo a multidão.
Caminho ruas estreitas cercadas de casarões. Eles me encaram de suas fachadas antigas e de seus frontais brota a borra de dias passados.
Em seus cômodos, fantasmas assombram paisagens em paredes, que dormiam...
Em seus quartos e salões, a salmoura do verão e a puxada da mulher na chuva.
Dos pórticos, brotam o vento e as anáguas das que ficaram, e – hoje, absorvem o que lhes sobrou.
Capino sobre as pedras do quintal, esse caminho, que cruzo, onde reencontro parentes e vizinhos de antes e de ontem.
O baque que trago é o de gerações fundidas em sucessivas prenhezes, a mãe, que pariu onze, os sete que se criaram, dois já morreram (sou um deles).
Fui – e, quando pensava ficar, cheguei depois das seis, quando nada mais era permitido.
Capino o mundo que não me pertence. Dele extraio o que me distrai... Traio-me e sou traído pelo barulho de minha cabeça.
O que sou agora, já soou... Sigo o caminho traçado por nós.

Gente boa

Outro dia, acompanhado do amigo Rairul Louchard, saí à procura de um colega recém chegado à cidade, advogado e jornalista, que atende pelo nome de “Sampaio”. Procurávamos por ele, a fim de convidá-lo para uma reunião de escritores, que aconteceria naquele mesmo dia – à noite, em minha residência. Andávamos no veículo de Rairul – autor de “Sua Majestade”, até que batemos à Justiça do Trabalho, onde adentramos, antecedidos de uma senhora, que, viríamos saber depois, era advogada. Ela, que chegara antes de nós, sentou-se à mesa do rapaz, negro e forte, enfiado em um paletó, que lhe aumentava a envergadura, e acabava – senão lhe tirando, mas, pelo menos, atenuando-lhe a condição de atendente, atento às considerações da mulher. Rairul, que se adiantara a mim, foi quem primeiro lhe dirigiu a palavra, sempre naquele seu estilo meloso e difuso de falar, perguntando ao enfatuado, se ali trabalhava algum Dr. Sampaio. Não ouvi resposta do rapaz, mas, quem acabou nos respondendo, foi a senhora, que manejava uma pasta parecida àquelas, que, normalmente, nos fóruns e cartórios de comarcas, os causídicos costumam abarcar. Adiantei-me um pouco, de modo a quase ficar frente a frente com o pseudo atendente da Justiça trabalhista, que, calado, atentava ao que a advogada lhe dizia – e ao que ela lhe mostrava também, sem, contudo, demonstrar o menor interesse por nós, e mesmo ao que nos respondera a gentil senhora, certamente já incomodada pelo pouco caso, que nos fazia o engravatado. Nesse instante, ao presenciar a cena, veio-me de imediato o pensamento de que se tratava de um mudo. Lembrei-me em um átimo das vagas de emprego reservadas a pessoas deficientes – principalmente em repartições públicas, no que fui – de pronto, desenganado, ao ouvir a voz do tal recepcionista, que se dirigia à doutora. Foi então que me senti tentado a me dirigir ao cidadão de preto, fazendo-lhe quase a mesma pergunta de Rairul. Desviando leve e rapidamente a atenção do calhamaço da advogada, o rapazote me disse que não, que ali não existia nenhum Dr. Sampaio, e que nos dirigíssemos ao Ministério do Trabalho e do Emprego, que ficava ali perto, que talvez fosse lá. Recebida a informação, saímos na direção indicada, onde, finalmente, achamos o Sampaio. No dia seguinte, quando nos encontramos novamente, eu e Rairul, ainda ressentidos pela falta de cortesia do mancebo, que nos atendera tão mal, de repente, pegamo-nos a articular uma explicação para o fato da véspera. A versão partiu de mim, e consiste no seguinte: o rapaz nos prejulgou. Ele viu dois “zés-ninguéns” diante dele. O primeiro, um senhor já de boa idade, alto, chapéu de palha, óculos escuros, camisa mangas longas e calça preta. O outro, senhor já de idade avançada, cabelos quase todos brancos, baixinho, barba mal feita e uma pasta preta de trinta reais debaixo do braço. Ele não pressentiu nenhum ar de doutor com quem ele está acostumado a lidar. Ele pensou: esses devem ser dois espertinhos, que já vem querendo me aplicar o golpe da inteira da passagem do ônibus, quer ver? Só que eu não vou dar a mínima para eles. Todo dia aparecem por aqui com a história de sempre: viemos do Estado vizinho e não temos dinheiro para comprar a passagem de volta, pode nos arranjar dois reais? Rimos bastante, mas contamos a história a outro colega, que conhece o balconista, e ele nos disse, que o cara é gente boa.